quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Capítulo II

          Fui acordado por um telefone do Bajus, comunicando-me que não me podia ajudar de manhã, porque o futuro sogro estava na cidade e o pobre desgraçado vira-se obrigado a almoçar com ele.
          Como não gosto de andar sozinho logo de manhã - pode dar-se o caso de eu ainda não me ter recomposto completamente das beberragens da noite anterior - convidei o Puto para me acompanhar até à residência episcopal, onde sabia poder encontrar o Monsenhor. Pelo caminho encontrámos o Virgo, cambaleando.
          Quem nos abriu a porta foi a criada, certamente uma velha beata a pedir reforma, mas que ainda detinha papel importante na casa episcopal como "correio" das coscuvilhices da diocese.
          A velhota perguntou-me o que queria e respondi-lhe que desejávamos falar com o Monsenhor. Mandou-nos esperar e, seguidamente, desapareceu, fechando-nos a porta na cara e deixando-nos no meio da rua. Voltou daí a pouco e comunicou-nos que o Monsenhor nos iria receber logo que terminasse as suas orações matinais. Eram onze horas.

          O Puto olhou para o relógio pela milionésima vez e olhou-me de soslaio.
          - Mas quando é que o Monsenhor acaba as suas orações?
          Mal tinha acabado de pronunciar estas palavras e eis que surge a augusta personagem, vestida com um fato de ginástica azul e branco que lhe salientava grandemente os órgãos genitais. O Puto pareceu realmente impressionado pelo quadro, pois, como me veio a confessar mais tarde, estava plenamente convencido de que os membros da Igreja não eram dotados pela natureza neste aspeto. Seria uma medida cautelar por parte de Deus para evitar possíveis tentações.
          Mandou-nos sentar, após uma efusiva troca de cumprimentos.
          - Estou à vossa inteira disposição. Como sempre, aliás. Todos os alunos sabem que podem contar comigo sempre que necessitarem.
          O Puto abriu a boca, certamente para deixar escapar um qualquer comentário satírico por entre aquele seu sorriso bronzeado que tanto cativava as meninas, pelo menos parte delas, e mesmo assim apenas por algum tempo. Com efeito, tinha causado grande escândalo (como aqueles tempos eram, em que estas coisas provocavam alarido!) a notícia, conhecida há um par de meses, de que o rapaz tinha sido traído pela namorada de então, uma escanzelada feia como uma porta. No entanto, antecipei-me à bojardada e disse:
          - Sua Alteza...
          - Eminência, Eminência! - corrigiu-me o homem.
          - Sua Alteza Eminência (na época, não se falava na gramática de formas de tratamento, por isso eram naturais estas confusões, sobretudo em alunos cábulas)...
          Ouviu-se um suspiro de desalento do lado do cadeirão do eclesiástico.
          - Como já deve ter conhecimento, o Dr. Custódio, o ídolo de todos nós, foi raptado.
          - Sim - interrompeu o homem. - Já me disseram qualquer coisa, mas... como sabem que foi raptado?
          - Então - exclamou o Puto, sem que, desta vez, o conseguisse travar - o homem não aparece em lado nenhum, logo ou foi raptado ou está morto.
          - Meu jovem, já lhe ocorreu que o caríssimo professor pode estar em mil e um sítios deste mundo, a tratar de assuntos da sua vida.
          - Vossa Senhoria - desta vez era o Puto a disparatar no campo das formas de tratamento -, se conhecesse o nosso amado professor de História da Língua, nunca produziria semelhante dislate.
          Ficámos os dois - eu e o Monsenhor -, de boca aberta, a contemplar o de Vila Nova de Foz Coa. Onde raios teria ele aprendido aquela palavra?
          - Como, jovem? - a pergunta de Sua Eminência tivera o condão de quebrar aquele momento de espanto celestial.
          - O nosso doce professor nunca, mas nunca, falta a uma aula: faça chuva ou sol, trovoada ou caia granizo, dia ou noite, ele vem sempre dar-nos as suas duas aulinhas semanais.
          Por momentos, emocionei-me interiormente com as lembranças que aquelas palavras tinham despertado: voltaria eu a ouvir o roncar do motor do avião do docente? Teria nova oportunidade de, disfarçadamente, proteger o rosto dos balázios com que eu e os demais que ocupávamos as duas ou três primeiras filas da sala de aula éramos contemplados durante a sua lecionação? Como suportaríamos não contemplar, uma vez mais que fosse, os velhos apontamentos, aquelas folhas amarelecidas pelo tempo (diziam as más línguas que datavam do tempo que o homem passara pela Alemanha)?
         - É como diz o meu colega, senhor padre - era eu novamente a fazer figura -, é impossível que o homem ousasse faltar a uma aula. Ele é mais pontual e assíduo do que um canivete suíço...
          Novo suspiro se fez ouvir.
          - Bom, se é assim, é capaz de lhe ter acontecido algo de grave... E o que desejam vós de mim?
          Olhei para o Puto e ele para mim.
          - Puto, explica lá ao homem...
          - Bom, a polícia acredita também que estamos na presença de um caso de rapto.
          Mais uma vez, ficámos incrédulos com a fluência discursiva do meu colega. Era espantoso como só agora, ambos sóbrios, eu me conseguira aperceber das suas capacidades oratórias.
          - E já tem um suspeito, que é... bem, como dizer isto?... Errrr... É você...
          Espantoso aquele contraste entre o "dislate" e o "você"! Notável o modo como ele dominava os diferentes registos de língua e saltitava entre eles com um à-vontade desconcertante. Aquela malta nascida na fronteira entre a Beira Interior e Trás-os-Montes detinha, de facto, uma cultura e diversidade linguísticas apreciáveis. Ou será «uma cultura e diversidade linguística apreciável»? Bom, não sei, o amável leitor que escolha. Se soubesse por onde anda hoje o Puto, ligava-lhe e perguntava-lhe qual a expressão correta, mas assim...
          Voltando ao nosso enredo, o Monsenhor, escutadas aquelas palavras avisadas, permaneceu uns instantes estático, qual ser acabado de olhar Medusa nos seus temíveis bugalhos oculares, e depois soltou um urro fenomenal, enquanto desalapava o traseiro gordo e peidorrento do cadeirão.
          - Eu? Mas porquê, Senhor? Porquê, meu Deus?
          - Por mera casualidade (olha o regresso a um registo mais elevado), eu sei... Vossemecê foi denunciado pelo Jorge Capitolino.
          - Quem?
          - O Jorge Capitolino, um aluno do 3.º ano de Gestão.
          - Ai, o grande filho da puta! Tens a certeza do que dizes, rapaz?
          Não tínhamos ouvido a pergunta, pois ainda estávamos com os dentes podres e cariados bem à mostra, evidenciando o nosso pasmo perante a expressão tão pouco católico do representante de Nosso Senhor Jesus Cristo entre os pecadores.
          - Grande cabrão! - prosseguia o homem, passeando desabridamente pela sala, enquanto se benzia, não sabíamos se de espanto com a notícia da sua suspeita, se pedindo perdão ao Altíssimo enquanto proferia obscenidades. - Deixa estar, que eu já te vou tratar da saúde. Obrigado, rapazes, pela informação. Bom trabalho! Agora, se não se importam, tenho de esclarecer uns assuntos.
          Já na rua, questionei o meu colega sobre a sua bufadela, que certamente iria sair bem cara ao Capitolino. Nunca suspeitei que o Puto fosse capaz de tamanha vileza e disse-lho frontalmente. Foi então que ele me explicou o porquê do seu gesto. Sucede - ó maravilhas da Literatura, que permitem estes encantos! - que o Capitolino era o infausto que havia roubado o coração à esbelta ex-namorada do meu colega.
          E aquela manhã acabou com o Puto a pagar-me o almoço no "Rio Sul" como gesto de agradecimento por, ao convidá-lo a acompanhar-me naquela visita matinal, lhe ter proporcionado a oportunidade de ajustar contas com o incauto Capitolino. Da vingança do Némesis eclesiástico não daremos notícia, tal foi a violência de que se revestiu. Basta acrescentar que o futuro gestor ainda hoje se não recompôs do corretivo que lhe foi aplicado.
          Pára por aqui este capítulo, dado o avançado da hora. A obra prosseguirá em momento oportuno, que tanto poderá ser já amanhã, como daqui a vinte anos, mais ou menos o período temporal que mediou entre a escrita do primeiro e de metade do segundo capítulos e a redação das linhas subsequentes à primeira fala do Monsenhor. Parafraseando uma música do inesquecível António Sala, "tanto tempo passou entre nós".

Capítulo I

          Bolas! Bolas! Bolas! Três vezes bolas! O estúpido do despertador tinha "adormecido" outra vez - esquecera-me de lhe dar corda - e eu é que me ia tramar.
          Eram inúmeras as vezes que isto me acontecia, mas o pior eram as reprimendas que apanhava sempre que entrava na sala com a aula prestes a atingir a sua primeira metade. A maior parte dos professores habituara-se já aos meus constantes atrasos e ignorava-os simplesmente, mas havia duas ou três ovelhas que insistiam em tentar fazer de mim o "exemplum" a não seguir. Enquanto isso, o Aper cronometrava ansiosamente todos os meus percalços, na esperança de novos recordes da minha parte.
          Porém, nessa manhã - para meu grande espanto e contentamento - encontrei a universidade completamente invadida pela polícia e, assim, ninguém notou este novo atraso.
          No meio da confusão, consegui encontrar o Bajus e assim fiquei a saber o motivo de semelhante alvoroço: tinham raptado o Doutor Custódio, um santo professor - tão santo que, no final de cada ano, era sempre chamado ao Conselho Científico por não ter chumbado nenhum aluno.
          Aquela notícia deixou-me de rastos, tão grande era a admiração que nutria por tão nobre personagem. Deste modo, após ter bebido umas "bijecas" para me recompor do choque, resolvi-me a tentar descobrir quem o teria raptado, no que fui inteiramente apoiado por todos os meus colegas.
          Pois... as intenções eram boas; o diabo era saber por onde havia de começar as minhas investigações.
          Estava eu prestes a desistir dos meus intentos, mesmo antes de começar, quando me lembrei que o Asquiltes tinha um tio que era polícia.
          Procurei-o imediatamente por todo o lado, mas parecia que também tinha sido raptado, pois ninguém o vira ainda, embora eu tivesse visto o seu "tanque" estacionado lá fora.
          Foi então que o Fidalgo Brancuti me veio avisar que o Asquiltes estava na casa de banho a vomitar; com efeito, o danado ainda não se tinha recomposto da sua última bebedeira, que datava já de há quatro dias.
          Enfim, depois de muitos cafés que lhe enfiámos no bandulho, lá conseguimos que o rapaz fosse procurar o tio para saber algo em relação ao rapto do nosso amado professor. Pelo sim pelo não, acompanhou-o o Excrescência Estatal para evitar que o colega Asquiltes se esquecesse do que ia fazer e abancasse na primeira tasca que encontrasse. Enquanto isso, eu tentava colher informações junto da polícia que inundava a minha adorada universidade. Porém, todas as tentativas foram infrutíferas e nada consegui.
          Mas o Bajulador também não tinha ficado parado e, após bajular este e aquele, conseguiu falar com o chefe do batalhão que tinha sido destacado para se ocupar do caso. E estava eu a tentar apalpar o traseiro à filha da Dr.ª Luísa, quando ele chegou junto de mim todo ofegante e sorridente. Apeteceu-me dar-lhe um violento murro no focinho, pois, quando me tocou no ombro, apanhei um susto do caraças, pensando que era a mãe da miúda.
          - Consegui! Consegui! - exclamava ele, exultando de alegria.
          - Conseguiste... o quê? - perguntei eu, ainda não refeito do susto.
          Olhei então bem para ele e constatei que estava mais vermelho que as minhas cuecas.
          - Estive a falar com o chefe da polícia...
          - Sim?!?
          - Eles já têm um suspeito!
          - Já? - admirei-me eu. - E então, quem é?
          - O Monsenhor!
          Em resumo, o que se passava era o seguinte: o Dr. Custódio e o Monsenhor tinham frequentes rixas desde que aquele rejeitara o aumento que lhe havia sido concedido. Constou mesmo no meio universitário que o Monsenhor tinha ameaçado de morte o bom professor, caso este persistisse em rejeitar o aumento que lhe tinha sido proposto. Ora, um aluno do curso de Gestão que não gostava do Monsenhor por este ter baixado as propinas 90%, conhecedor do atrito entre ambos, foi contar à polícia o que sabia, deixando o simpático clérigo em maus lençóis.
          Perante semelhante nova, restava-me aguardar o regresso do Asquiltes com mais novidades.

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          O relógio da Sé acabava de bater o meio-dia quando eu, acompanhado do Bajus e do Fidalgo, entrei na esquadra da PSP, de acordo com um chamamento do Asquiltes.
          Fomos encontrá-lo na receção.
          - Então, que descobriste? - principiou o Bajus.
          - Conhecem este gajo? - perguntou uma voz atrás de nós.
          Voltei-me e constatei que se tratava de um agente da esquadra, chamado Alverca.
          - Conhecemos, sim! - respondeu o Fidalgo.
          - Diz que se chama Asquiltes e que veio cá por ordem de um tal Ipas...
          - O Ipas sou eu e é verdade que o mandei à esquadra. Mas onde está o Excrescência Estatal, que tinha vindo contigo?
          - Está no hospital - respondeu o agente.
          Ficámos boquiabertos e o nosso olhar inquisitório recaiu sobre o Asquiltes. Mas foi o agente Alverca quem nos elucidou:
          - O vosso amigo aqui vinha a conduzir bêbedo...
          - Então teve um acidente? - perguntou, ansioso, o Bajulador.
          O agente teve um sorriso irónico.
          - Não exatamente! Quando estacionou, esqueceu-se de travar o carro e, no momento em que o vosso colega ia a sair, o veículo descaiu e bateu-lhe com a porta.
          Alguns minutos depois abandonávamos a esquadra, juntamente com o Asquiltes, embora nos apetecesse deixá-lo preso. O agente também não estava muito disposto a deixá-lo sair, mas, quando soube que era sobrinho de um colega seu, aprestou-se a fazê-lo.
          O Fidalgo ainda se lembrou de fazer uma visita ao Excrescência, mas estava na hora do almoço e, assim, fomos para casa do Bajus, que elegemos como quartel-general das nossas investigações.

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          Já era noite quando deixámos o nosso quartel-general, quatro esponjas bem embebidas em álcool. As investigações e a visita do Excrescência tinham de aguardar para o dia seguinte.